Com vinte kilos do ‘Galiza: língua e sociedade’ cheguei a Bruxelas; no Porto ficara o meu carro a me aguardar. Esse mesmo dia desenhei com os pés grande parte do mapa da capital europeia, deixando entrar para o meu interior a cidade. Cerveja fria e patacas quentes, acabadas de frigir, fizeram que me encontrara em casa, afinal em casa estava. A paisagem humana multicor, multivestimenta, multilingue, e numa palavras, multicultural, que povoava o Grote Markt, que para alguns é a praça mais bonita da Europa, matou saudades que vêm dos tempos nos que vivi nos Estados Unidos.
O dia quatro de manhã, puxando a mala de rodas, levei os livros à Orfeu, livraria de livro português e galego. Passei por diante do prédio onde ondeia a bandeira galega no topo sinalizando o lugar da Fundação Galiza Europa, era sábado e não pude visitar. Na tarde fizemos a apresentação do nosso livro e da nossa Academia num entorno amigável, com o ‘Atlas Histórico da Galiza’ a nós espreitar desde o seu atril na mesa central da livraria. Abriu a sessão Joaquim Pinto da Silva, alma da Orfeu, assombrosa a galeguidade deste irmão do Porto. A seguir dele falou Ana Miranda, que eu não tinha a honra de conhecer pessoalmente. E finalmente falamos os três membros da Academia Galega da Língua Portuguesa, Carlos Durão, Ernesto Vazquez Souza e eu. E chegou o debate intenso e interessante; sempre é bom encontrar gente de além Minho no processo de redescobrir a Galiza, porque aquela na que nos fizeram crer, a ambos lados da raia, é mentira. Descobrir a Galiza como ‘ser vivo e diferenciado’ como diz o Victor Domingos, meu amigo de Arcos de Valdevez, é um achado que define também quem são os portugueses e não apenas quem são os galegos. O Norte de Portugal é inexplicável sem a Galiza e vice-versa.
O vivo debate na Orfeu veio mostrar a intensidade com a que muitos portugueses começam a se interessar pola nossa sorte. E falou-se no Couto Misto e no seu aniquilamento em mãos dos dous estados centralistas a finais do século XIX. O longo debate meteu-nos na noite e continuou-se polos cafés da cidade... A nós se somara Miro, galego em Lusemburgo, e outros amigos e amigas.
O dia a seguir visitamos Brugge (Bruxas) para deixar de ouvir tanto francês e nos internar mais em Flandres. Descobrimos que o flamengo soa bastante diferente do neerlandês dos Países Baixos, o que não parece impedimento para eles usar a mesma ortografia; senti inveja de seu saber que lhes permitiu ver com claridade a sua língua independentemente de fronteiras e de sotaques, eles não permitiram que o flamengo se convertesse em nenhum híbrido, como nos está a passar a nós...
O dia 6, acompanhados por Ana Miranda, a voz da Galiza no Parlamento Europeu, conhecemos as instalações desta instituição. Um conjunto de elegantes edifícios com fachadas de vidro e conectados entre si por corredores elevados que enchem tudo de luz exterior. Belos mesmo. A visita demorou bastante, também porque a Ana se via na obriga de se deter cá e lá para falar com alguma pessoa. Fiquei impressionada de como todo o mundo a conhece e a considera ‘A representante da Galiza’. Desejei ter poderes, como os nossos druidas, para comunicar ao nosso povo o que eu vi ao longo deste passeio com a Ana, e fiquei triste polos que a não votaram por não sei que ou não sei quantos do governo do bipartido... Conhecemos os espaços nos que antes falara Camilo Nogueira. Vimos as cabinas de tradução, a de ‘português’ apegada a de ‘espanhol’... entrar por uma ou pola outra levará a mundos muito diferentes e mesmo opostos. Passear com Ana Miranda por aquele universo europeu, no que ela se maneja em mais de cinco línguas como o peixe na água, foi muito saudável. Eu senti a Europa minha, cercana, conquistável... Para Ana Miranda e para Joaquim Pinto da Silva, funcionário do PE e diretor da Orfeu, vai o meu mais sinceiro agradecimento.
Acrescento duas reflexões finais:
Bruxelas é a capital de Europa, mesmo que o parlamento se tenha que deslocar todos os meses durante uma semana para ir a Estrarsburgo e cumprir o custosíssimo pacto que em tempos se fizera para contentar os franceses. Mas Bruxelas é também a capital do Estado Belga, e como tal toda ela está rotulada nas duas línguas do Estado: Nerlandês-Flamengo e Francês. Preguntei-me sobre quando será Madrid rotulado nas diferentes línguas do Estado Espanhol. Um estado multilíngue necessita uma capital multilingue; se não se sentem capazes de o levar a prática talvez a capitalidade do Estado Espanhol devia ir a uma cidade mas capacitada e mais respeitosa.
Os defensores de ‘galicia bilingue’ e a liberdade de escolha de língua, durariam um dia na Bélgica; lá não é apenas que os funcionários de Flandres tenham que conhecer o Nerlandês-Flamengo, é que essa língua é a única na que se podem exprimir, nenhuma outra, nem o inglês, pode ser usada. Pode parecer que efectivamente isso limita a liberdade de algumas pessoas; mas é que a ‘liberdade’ separada da ‘fraternidade’ e a ‘igualdade’ não vale nada... Os Flamengos sabem colocar as barreiras protectoras no seu sítio... e nós cá com o inimigo dentro a arrancar as fracas portas que outros tentaram colocar. É uma tristeza regressar sabendo que tudo podia, que tudo devia, ser diferente... Ao chegar ao Porto a minha mala não apareceu e eu entendi que o pais ainda não queria voltar...
Concha Rousia nasceu em 1962 em Covas, uma pequena aldeia no sul da Galiza. É psicoterapeuta na comarca de Compostela. No 2004 ganhou o Prémio de Narrativa do Concelho de Marim. Tem publicado poemas e relatos em diversas revistas galegas como Agália ou A Folha da Fouce. Fez parte da equipa fundadora da revista cultural "A Regueifa". Colabora em diversos jornais galegos. O seu primeiro romance As sete fontes, foi publicado em formato e-book pola editora digital portuguesa ArcosOnline. Recentemente, em 2006, ganhou o Certame Literário Feminista do Condado. »